sábado, 29 de maio de 2010

O encantador de silêncios


 Zeca Corrêa Leite
                                                    
                          
O encantador de silêncios

Apenas um vilarejo. Era apenas um vilarejo
colocado no ermo dos campos esquecidos.
Ali vivíamos desenrolando o novelo dos dias
com uma paciência aprendida dos avós
que tinham por mania rir de velhas lembranças
escancarando por vezes as bocas murchas.
Não tinha estardalhaço, pairava o silêncio
com a mesma naturalidade com que o sol
banhava as ruas, tão poucas, tão sem graça,
esquentando  a terra ressequida.
Só se ouvia o choro das criancinhas impertinentes,
torturadas por cólicas e dor de ouvido,
geralmente de noite acometidas.
A meninice herdava a mesma falta de palavras,
como se fôssemos páginas em branco.
Havia um certo abandono
gerado de outros abandonos,
como se todos os séculos fossem assim
de vivências desamparadas.
A noite descia sobre nossos olhares vazios
indiferentes aos vaga-lumes e pirilampos,
a embriaguez das estrelas, a solidão do lugar.
Quando amanhecia o dia era só mais um dia.
Ou nem era dia, não era nada.
O novelo sendo desfeito:
moscas varejeiras nas feridas dos cachorros,
velhos sentados nas portas das casas,
calorão no ar rarefeito.

Nos campos ao redor
árvores raquíticas teimavam em crescer,
cumprindo com seu destino.

De lá, desses perdidos encontros do céu e da terra,
de vez em quando vinha um velho muito velho
arrastando atrás de si legiões de anjos insones.
Tocava rabeca, o louco.
Tocava num desvario de sonhos atropelados,
dançava, cantava canções esquecidas
de palavras apagadas.
Dos pés descalços subiam poeiras mágicas amareladas,
e aos nossos olhos assustados
os diáfanos anjos apareciam
pousando a cabeça uns nos ombros dos outros,
como se adormecessem anestesiados
com toda aquela balbúrdia.
A meninada corria ao encontro do  músico
como almas enfeitiçadas,
homens pegavam em armas,
mulheres sumiam nas casas
passando tranca na porta.
Os velhos tomados de despeito
ruminavam impropérios
aos fantasmas de seus peitos.
No vilarejo a existência que era nada
em paraíso se transformava.
Um semicírculo de crianças
formava a platéia encantada.
Quando o velho partia, os anjos o seguiam
rasgando as vestes de seda
nos espinhos dos galhos secos.
A tarde morria, a noite chegava.
Na quietude dos silêncios
via-se nos olhos das crianças
o brilho que ficara da música
ouvida em outro momento.




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