domingo, 15 de fevereiro de 2009

Um conto divertido


O Homem que queria eliminar a memória

Entrou no hospital, mandou chamar o melhor neurocirurgião. Disse que era caso de vida e morte. Não se sabe como, o melhor neurocirurgião foi atendê-lo. Médicos são imprevisíveis. Precisa-se muito e eles falham; subitamente estão ali, salvando nossas vidas, ele pensou, sem se incomodar com o lugar comum.
Estava na sala diante do doutor. Uma sala branca, anônima. Por que são sempre assim, derrotando a gente logo na entrada.
O médico:
Sim?
Quero me operar. Quero que o senhor tire um pedaço do meu cérebro.
Um pedaço do cérebro? Por que vou tirar um pedaço do seu cérebro?
Porque eu quero.
Sim, mas precisa explicar. Justificar.
Não basta eu querer?
Claro que não.
Não sou dono do meu corpo?
Em termos.
Como em termos?
-Bem, o senhor é e não é. Há certas coisas que o senhor está impedido de fazer. Ou melhor: eu é que estou impedido de fazer no senhor.
Quem impede?
A ética, a lei.
- A sua ética manda também no meu corpo? Se pago, se quero, é porque quero fazer do meu corpo aquilo que desejo. E se acabou.
-Olha, a gente vai ficar o dia inteiro nessa discussão boba. E não tenho tempo a perder. Por que o senhor quer cortar um pedaço do cérebro?
Quero eliminar a minha memória.
Para que?
Gozado, as pessoas só sabem perguntas: o quê? Por quê? Para quê? Falei com dezenas de pessoas e todos me perguntaram: por quê? Não podem aceitar pura e simplesmente alguém que deseja eliminar a memória.
Já que o senhor veio a mim para fazer esta operação, tenho ao menos o direito dessa informação.
Não quero mais me lembrar de nada. Só isso. As coisas passaram, passaram. Fim!
- Não é tão simples assim. Na vida diária, o senhor precisa da memória. Para lembrar pequenas coisas. Ou grandes. Compromissos, encontros, coisas a pagar etc.
É tudo isso que vou eliminar. Marco numa agenda, olho ali e pronto.
Não dá para fazer isso, de qualquer modo. A medicina não está tão adiantada assim.
Em lugar nenhum eu posso eliminar a minha memória?
Que eu saiba não.
Seria muito melhor para os homens. O dia-a-dia. O dia de hoje para a frente. Entende o que eu quero dizer? Nenhuma lembrança ruim ou boa, nenhuma neurose. O passado fechado, encerrado. Definitivamente bloqueado. Não seria engraçado? Não se lembrar sequer do que tomou no café da manhã? E para que quero me lembrar do que tomei no café da manhã?
Se todo mundo fizesse isso, acabaria a história.
E quem quer saber de história?
Imaginou o mundo?
Feliz, tranqüilo. Só de futuro. O dia em vez de se transformar em passado de hoje, mudando-se em futuro. Cada instante projetado para a frente.
Não seria bem assim. Teríamos apenas uma soma de instantes perdidos. Nada mais. Cada segundo eliminado. A sua existência comprovada através do quê?
Quem quer comprovar a existência?
A gente precisa. Para quê?
O médico pensou. Não conseguiu responder. O homem tinha-o deixado totalmente confuso. Pediu ao homem que voltasse outro dia. Despediram-se. O médico subiu para os brancos corredores do hospital, passou pela sala de operações. Chamou um amigo.
-Estou pensando em tirar um pedaço do meu cérebro. Eliminar a memória. O que você acha?
-Muito boa idéia. Por que não pensamos nisto antes? Opero você e depois você me opera. Também quero.


Ignácio de Loyola Brandão. Para gostar de ler. Volume 8. Contos. São Paulo: Ática, 1983, pp.14,15 e 16.

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